domingo, 21 de setembro de 2014

a mesma língua. o mesmo coração.

     viajar para um lugar onde se fala a mesma língua é único. assim o sinto. é integração total, a cem por cento como se estivesse em minha casa. assim o sinto.
     o Rio de Janeiro ficou a minha casa e reconhecer que essa ligação não foi sequer gradual é concluir a verdade da afirmação. ficou. não foi ficando. 
     
     tudo começou numa madrugada de um dia de dezembro, depois de inúmeras advertências de amigos portugueses e brasileiros e de umas quantas leituras nos guias de viagem habituais: 
    viaja para o RJ mas tem muito cuidado. não andes sozinha, evita os transportes públicos, deixa as tuas máquinas preferidas e esquece o teu iphone. tenta passar despercebida. 

     assim fiz. viajei.

    só que levei nessa viagem todo o meu olhar, a minha querida e inseparável canon, iphone e ainda houve lugar para a pequena grande leica. 

     assim levei. assim trouxe também. e todas as saudades que esse Rio deixou e que sopram ao meu ouvido todos os dias desde que o deixei. tudo andou comigo no saco de tiracolo, todos os dias. em todos os lugares.
     
   foi uma aventura inesquecível, saboreada a doze mãos em dez dias de trocas, como há quinhentos anos atrás. mas carregada de baterias.

     o Rio de Janeiro é um sonho e os cariocas a sua composição.  

    o apartamento em Ipanema, na Visconde de Pirajá foi a âncora do acontecimento e dali partia para a praia do posto 9 (quase) todos os dias. há vinte anos que não frequentava praias tão cedo. às oito e meia da manhã pisava todo o areal, visível da ponta do arpoador à minha esquerda até ao morro dois irmãos, à direita. um dia no RJ era dia e meio meu em Portugal. a praia é um observatório fantástico do que são os cariocas e os seus turistas e da ligação de tudo isto com uma  loucura que eu não conhecia e da qual fiquei fã, apesar de me apetecer de vez em quando ligar o off. esse botão era o on do ipod e as músicas que saboreava ao mesmo tempo que o cigarro que acendia. 

    na agenda tinha os meus planos habituais aos quais concorre quem quer e esses que depositam confiança neles são, por isso, muito bem vindos. foi assim que num sábado de manhã partimos, eu e miss neves, numa incursão pelos meandros da labiríntica feira de velharias na Praça XV ("evite o centro histórico do RJ ao fim-de-semana") enquanto esperávamos que o nosso ferryboat nos chamasse para a travessia que nos levava ao MAC do Niemeyer, em Niterói. não me lembro quanto pagámos mas sei que foi muito pouco. 

     o centro histórico do RJ num final de tarde de sábado impõe respeito. culpa da invasão sentida de um estranho e repentino silêncio e vazio de gente. deixámo-lo, por isso, mais vazio ainda, apanhando o metro até à nossa Visconde.

     viajar não faz sentido se não for para sentir o lugar. senti-lo é fugir dos viajantes que, como eu, procuram contornar a rotina. uns mais do que outros. não me façam conviver com "colegas de cabine". viajar é entrar na rotina dos habitantes do lugar escolhido, fazendo o esforço relativo para evitar "olhar de janela". consegui nesta tentativa de que nunca me arrependo, um cabeleireiro de quinze metros quadrados onde cabiam vinte mulheres e um homem e onde me esticaram o cabelo como nunca mais quis. o Rio de Janeiro apaixonou-se pelo meu cabelo encaracolado e deu-lhe um jeito que eu desconhecia. 

      o Rio de Janeiro fez-me bonita.

     calcorreei o seu centro histórico duas vezes. uma com as cinco. outra sozinha. 

  foi na visita solitária que lhe fiz que mais o amei porque melhor o conheci. sentimento de reciprocidade, sem assistência que evitasse uma entrega espontânea. entrei e saí das igrejas de referência, das livrarias esquecidas, dos botecos improváveis, regateei muito na loucura do mercado do saara, local desconhecido da maioria dos visitantes do Rio. gosto de viajar sozinha desde que experimentei fazê-lo há treze anos pela Toscana, munida de meia dúzia de contos de reis na carteira e uma vontade enorme de abraçar o mundo. e quando viajo, há sempre um dia, uma tarde, uma manhã, umas parcas horas em que o lugar eleito é só para mim. todos sabem disso e nunca ninguém se opôs à fuga, embora eu saiba que lhe conhece estranheza.

    no crescimento desse amor, no grande centro, tentei por três vezes apanhar um táxi que me levasse a Santa Teresa. só o terceiro se rendeu à essência da sua função e depois de me perguntar pelo trajeto ideal, subimos o morro conversando como se, afinal, Santa Teresa não fosse assim tão perigoso como dizem - "mas tenha muito cuidado". despediu-se.

    Santa Teresa é amor ainda maior que sossegou numa carga de água do primeiro degrau no sentido descendente da colorida e divertida escadaria do selarón. as seis.

     a Lapa, ali tão oferecida sem contarmos com ela, numa esquina mal frequentada mas bem sucedida.  

   tudo se foi compondo como num texto escrito sem necessidade de borracha ou delete por se apresentar perfeito a cada linha de composição de palavras. 

    e num desses dez dias, espontaneamente, o RJ encaminhou-nos, quatro de seis, para a favela do Vidigal, sem guias, sem horas, sem responsabilidade. chegadas ao sopé do morro da favela subiríamos ou no motoboy ou nas carrinhas comunitárias onde cabe sempre mais um, conhecidas como vans. escolhemos subir pelo primeiro modo e proporcionou-se depois descer pelo segundo. 

    toda a minha viagem cristalizou neste dia em que, no cimo do morro, no lugar certo para enchermos os olhos com a melhor vista da favela para a zona sul, nos encontrámos sem encontro marcado com um grupo de quatro amigos entre os trinta e os sessenta anos. foi paixão. o Vidigal tatuado para sempre no meu coração.

    sei que as idas são sempre melhores sem planos definidos, indo além do que o conforto nos permite e explorando as intuições que temos. podemos ficar no melhor hotel do lugar ou no pior quarto da cidade. o que interessa é a qualidade da entrega e a capacidade de nos deixarmos deslumbrar. as melhores memórias são produto das maiores ousadias.

    esqueçam tudo o que se disse e escreveu sobre o Rio de Janeiro. entreguem-se-lhe demoradamente  que nada mais é o que ele pede, de braços geometricamente abertos, no alto do céu.

o Rio de Janeiro passou a ser meu, também.











     
uma vista e uma visita inesquecível. Alto do Vidigal, a nossa favela.
chegada ao Arvrão, no Alto do Vidigal de motoboy depois deste percurso:



Alto do Vidigal.

No Arvrão, no Alto do Vidigal, com alguns moradores.

a querida Dª Alice, moradora do Vidigal e membro da A.M.A.R.

do Cristo Redentor.  


Zazábistrô 
passagem pedonal de uma rua para outra, mesmo ao lado do super movimentado Saara.

bar do Marcô,  em Santa Teresa, linda de morrer.

éramos seis miúdas. aqui quatro. e fomos muito felizes.


um jardim vertical num restaurante no Leblon de que não me lembro o nome.

a baía de guanabara

o morro do pão de açucar vigiando a baía de guanabara. ou o contrário.

aos sábados de manhã, a imperdível feira de velharias na Praça XV.



aproveitar o Museu de Arte Contemporânea e visitar Niterói. 

MAC

do interior do MAC.


à procura de móveis que não podia trazer.

no meu dia solitário pelo centro histórico do RJ, saio do autocarro e dou de caras com o Vihls. apeteceu-me falar, saltar  e apontar. como não tinha ali ninguém com quem partilhar a emoção do encontro casual sorri muito.



três de seis. jardim botânico.

o cliché do jardim botânico.

 a lusofonia no chão. percebermo-nos pelas diferenças.

grumari



4 comentários:

Vanessa disse...

gostei tanto, Ana! que escrita tão absorvente, que descrição tão fantástica! és mesmo uma miúda super especial e eu gosto ceda vez mais de ti!
beijo

Maria Emília Melo disse...

Com essa escrita tão especial, a minha lista de viagens de sonho começou a alterar-se...no entanto, a vintena de anos que nos separa atormenta-me e repete-me " cachopa, não te metas em aventuras...!"

a paixão de anna disse...

beijo para ti, miúda super especial. ;)

a paixão de anna disse...

querida Maria Emília de Melo, a avó de uma amiga minha, depois de uma muito triste nova condição de viúva aos sessenta e cinco anos, partiu solitariamente pela Europa fora de mochila às costas com um compromisso apenas: de ligar todos os dias aos netos a dizer que estava bem. viajou todos os anos assim, até morrer e com ela levou o mundo. nunca me esqueço desta história.