estava no Brasil quando percebi a sua morte que calou por cinco minutos,
talvez, o desassossego em que me encontrava. a vida de muitos anos trazida por
quem preenche ricamente o presente nunca é longa demais. partir deste mundo é,
para quem aqui fica e em manifesto ato de egoísmo, uma enorme injustiça.
Nadir Afonso faz parte da minha vida há muito tempo por ter as paredes de casa
dos meus pais pintadas na medida do seu grandioso talento. recebi depois, num
longínquo natal, já casada, de presente do meu marido uma serigrafia dele,
Nadir, que me deixou embargada.
hoje sonhei com ele. vivo e a pintar. ao meu lado. numa casa atelier projetada
sobre um imenso areal que morria no mar. uma casa circular, como uma tenda de
circo, preenchida pela parafernália de instrumentos que a ocupavam, passou
naquele tempo de convivência sonambular a ser minha também.
havia sido contratada como sua assistente sem perceber porquê, se os pintores
não têm assistentes e eu, ainda por cima, com uma família em minha casa, à
minha espera e uma profissão para continuar. não haveria disponibilidade para lhe passar os
pincéis e limpar toda a tinta do chão que tombava, via eu muito bem, a partir
da pequena escadaria bem no
centro dessa casa. tudo branco e rosa. aquele rosa da serigrafia onde ele
se eterniza na minha sala.
há também diálogos maravilhosos que fomos tendo nesse percurso
noturno em vez de observações silenciosas que muitas vezes os meus sonhos
têm.
talvez tenha sido a minha homenagem a
uma forte figura de aparência frágil que a arquitetura transferiu em
singular beleza para a pintura.
e acordei assim, cansada.