segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

"Santa Clara - a - Velha, 26 de Junho de 1998



     Querida amiga,



     Escrevo-te debruçada sobre o varandim desta pequena estalagem que escolhi para morrer.

    Aqui passarei os meus dias até que a escolha da vida me indique o caminho para daqui sair. Em frente tenho um imenso espelho de água onde vêm beber os tordos pela manhã, assim que acordo, e em que se banham as crianças em final de tarde, depois da escola. A ladear, uma mata densa  de pinheiros mansos, verdes, quase fluorescentes. Em frente, mas do outro lado, muito raramente, um carro ou outro lembram-me que estou na desertificação dura do Alentejo. Não muito longe do lugar de onde fugi.

     Receio ter encontrado o melhor sítio para me consumir. E já comecei há muito. Desde que a suspeita de que ele me deixaria se tornou em certeza diante da confirmação que ele próprio, não tendo outro remédio, me deu. Num lindo dia de sol de inverno em que o perfume da entrada de nossa casa anunciou as primeiras flores da magnólia que plantámos juntos. Sei todas as datas.


     Não te entristeças com a minha tristeza, minha querida amiga, que acabará assim que todo o sofrimento do mundo descobrir que no meu íntimo mais nada interessará a não ser a minha infelicidade. Até lá apetece-me curti-la, gostar de me sentir infeliz na solidão rica de tudo o que conseguirei encontrar aqui. Torcer-me de carregar tanta dor que trago no peito e que não arranjei forma de ver sair. Aqui tudo será diferente. Tenho disso a certeza.

     Não te demores a ligar-me que nem o telefone trouxe. Apenas o livrinho de capa negra, a caneta cara que um dia encontrei no chão sujo de um metro apinhado e os meus livros. Os únicos objectos da nossa casa que conheciam uma só forma de ler e de lhes folhear os retratos das histórias que guardavam. E que comigo ficaram dada a impossibilidade prática da partilha.



     Deixo-te no escritório, no lado direito da gaveta onde guardas os teus snacks de quinta-feira, as chaves de minha casa, onde se encontram todos os meus pertences e que te rogo, se nada te disser até Setembro, que os entregues à minha irmã que vive na Bélgica.

     Morrer pode constituir-se um renascer, como me ensinaste. E eu escolhi que só posso renascer assim, literalmente morrendo de amor.  



     Com saudades desta tua,


     sempre tua,




     R. de Malva"

Nenhum comentário: