quinta-feira, 15 de novembro de 2012

todas as cartas serão ridículas?

    desde sempre ou pelo menos desde que me lembro de escrever uma frase inteira com algum sentido,  escrevo cartas. até à adolescência o destinatário cumulava os três tópicos de ser sempre alguém meu conhecido, de quem gostava e que morava longe. 
    o meu avô, que me escreveu a primeira carta quando nasci e as mais bonitas que alguma vez recebi, as minhas queridas tias do porto e do alentejo, as primas que se espalhavam um pouco por todo o país, as amigas que verão após verão colecionava na zambujeira e até, a determinada altura e a fugir desta tríade,  pessoas que nem conhecia de parte nenhuma, quando entrava naquelas correntes dos "amigos desconhecidos" e recebia cartas e postais de todo o mundo. em selos, aquilo devia ser uma renda pesada no orçamento familiar de seis pessoas. a verdade é que os meus pais pouco se importavam. pelo contrário, incentivavam semelhante vício perdulário. 
     guardo muitas das cartas. outras, tenho-as na memória, sabendo-as de cor e aflige-me desconhecer-lhes o paradeiro, adivinhando uma perda irremediável.
    chegada à adolescência, esta troca esquizofrénica de missivas escasseou. as recebidas. as enviadas. o destinatário manteve-se em alguém que conhecia e de quem gostava mas que amiúde estava perto e não já longe. num dos casos estava até bem perto, separada por um muro branco, por alturas de guerras frias. estas cartas, guardo-as todas e releio-as muitas vezes, assim que me lembro e abro a caixa azul de camisa de homem que eu própria forrei a tecido de linho cinquenta e cinco por cento, adornado com um grande laço do mesmo material.  
       continuei aquilo que se viria a revelar, afinal de contas, uma característica minha e que começou a rarear à altura em que passo a ditar ofícios burocráticos que me ensinaram começarem sempre da mesma maneira: "exmo sr., tenho a honra de comunicar a vª exª de que, blá, blá, blá". ó diabo que isto não pode ser bem assim! ora vamos lá dar a volta, na medida do que é possível, a esta grande chatice que é escrever cartas que, vejam só, se chamam ofícios. enfim. continuo a receber muita correspondência mas é só desta, entediante, nauseabunda, cheia de voltas e mais voltas e de "dê érres" linha sim linha não e às vezes com um errozito a manchar o peso da ditadura da lei. não falo de emails mas de cartas, físicas, em linhas escritas no papel, ainda por cima à máquina, deixando apenas adivinhar a letra de quem as enviou pela assinatura que a sela, que com um bocado de sorte é até um carimbo a óleo, mal chapado.
   ainda assim a maluqueira continua e quando recebo o correio diário entregue pela senhora carteira, há uma certa dose de entusiasmo que se desvanece de imediato e ao segundo segundo em que lhe ponho os olhos em cima. isto pode parecer ridículo mas quero crer que não é. estou segura que há comportamentos bem piores. 
    conheci este BLOG há uns tempos, fazendo parte da minha leitura diária e que, em toda a sua extensão interessante, a determinado ponto nele descubro uma rubrica de troca de correspondência.  e é com isto  que me identifico de imediato, porque me lembro de como era. da proximidade que se estabelecia com    a disponibilidade em oferecer a nossa escrita a alguém que estava longe, fora, noutro tempo, noutra vida, diferente da nossa e que era urgente conhecer.
    os selos continuam a ocupar uma boa parte da despesa mensal, agora paga por mim e não há outro remédio. mantenho-me fiel, porém, à pena e confesso que continuo aquela escrita, dirigida, vocacionada mas que o mais das vezes não chega ao endereço definido.
     
    

2 comentários:

Márcia disse...

tenho exactamente essa mesma percepção, hoje apenas mantenho os postais de férias ou viagens, fui perdendo o hábito de escrever... mas nunca é tarde para recomeçar :)

Anônimo disse...

Infelizmente, hoje as cartas que nos chegam só nos lembram que é preciso pagar: é a luz, é a água, é o gás, é a multa...é...é....Que bom que, pelo menos uma vez por mês, conseguíssemos ter e dar o prazer de receber uma que nos lembre que o melhor da vida está nos laços que conseguimos criar. Escrevamos uma a quem amamos,a nós próprios; uma em que as palavras estejam completas e até onde haja um P.S. Sentemo-nos a escrevê-la. sentemo-nos a lê-la.Gestos de passado que nos podem preencher o vazio de um presente com pressas, palavras abreviadas cuja alteração do significante também afeta a essência do significado.