terça-feira, 30 de outubro de 2012

o rapaz do djambé

    ela encontrou-o numa praia do norte. seriam umas três e meia de um dos primeiros dias de outono. o melhor sol no mais bonito dos mares. um areal inesquecível e um cruzar de dois olhares de idades tão diferentes.
    ele encontrou-a. sim, foi isso. encontrou-a envolvida em danças com os filhos (seriam certamente dela aquelas duas crianças) sob o olhar atento de um pai, homem dela, lá atrás, fora do areal.
     ficaram cinco, num quadro de pensamentos votados ao silêncio. mal se ouviam, se acaso quisessem falar. o mar explodia em estrépito som a cada onda de espuma, quebrando-se perto da mãe (e) de dois filhos vigiados, em afetuosa contemplação.
    chegou, encontrou-a, sentando-se com o seu djambé, iniciando um ritual de batuques secos e desarmónicos, ora fracos, ora fortes consoante os passos de dança que da rocha onde se sentou vigiava.
     outro olhar, nova contemplação. a terceira. mãe que vê os filhos. homem que abraça nos pensamentos a sua mulher.  um estranho sentado, musicando esse quadro, vigiando a sua inspiração.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

     adoro quando a minha filha, na segunda classe e nos ditados que lhe vou ditando escreve "proguelema", "belusão" e "biciqueleta". especialmente porque o "a" com e sem "agá" é empregue com todo o sentido de oportunidade.
     também me lembro de ter descoberto com nove anos que afinal o cheirinho bom do "bescoço" da minha mãe tinha que ser expresso de uma outra forma.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

há janelas que nunca se fecham


     recebi um abraço que me deixou bem. 
     recebi uma descrição de um voo picado para a morte que me estremeceu os sentidos. duas aves em duelo no limite de um céu imenso (eu sabia) nunca pode dar certo. a terra há-de ditar os algarismos do marcador final, encarregando-se de engolir o mais fraco dos duelantes que, sem padrinhos que o motivem, se atira para uma luta à partida desigual. 
     o que poderia decorrer sem incidentes na história tantas vezes escrita nas memórias do reino animal - sucumbe à terra o mais fraco, voa o mais forte - revelou afinal ao mais atento dos poetas, um desfecho em tudo trágico, como todos os fins. 
     o pó do chão recebeu aquelas duas aves, mortas naquele dia e para sempre à conta uma da outra, num combate batido em asas baixas e apagado no vidro de uma janela que encontraram fechada. irremediavelmente fechada para as não receber, sabendo-lhes assim o fim. 



quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Porto sentido

     tenho necessidade de passar tempo por minha conta. significa vontade de varrer a pé as ruas de uma cidade, sentir o vibrar agitado do seu coração, entrar numa igreja desconhecida, visitar a coleção inesperada do museu habitual, perder-me nos seus parques e jardins, conquistar paladares, olhar as montras exclusivas do lugar, descobrir corajosos muralistas anónimos, comunicar com quem me cruzo nesses percursos. sozinha.
     cultivo dessa forma um silêncio que me é imprescindível. ressaco se percebo que o momento passou e agendo de forma urgente uma data próxima para o fazer. sempre durante a semana, quando o frenesim da engrenagem dos cinco dias da semana de trabalho é notório. regresso revigorada, sem sacos pendurados mas atulhada das provas dos sítios por onde me detive. papéis, notas, rabiscos, desenhos, gráficos.
     nunca deixei de ir onde quer que fosse por me faltar quem fosse comigo. descobri o prazer de viajar sozinha, de mochila às costas e com muito mas muito pouco dinheiro há onze anos, pela Toscana, em Itália, país onde vivi dois meses e meio, tempo mais que suficiente para perceber que só não damos a volta ao mundo porque não queremos. a culpa é mesmo do verbo. é ele o grande entrave. 

terça-feira, 9 de outubro de 2012

frugalidades

     saber receber bem porque se gosta de o fazer. é mais do que convidar. dá-se o máximo do que somos em tudo o que temos. uma oferta de retorno assegurado apresentado em sorrisos gratos de cumplicidade. porque se foi o preferido, o eleito. e quem não gosta desse apontar de dedo. de escolha.
     na mais simples das mesas, comigo é assim. nem podia ser de outra maneira. sempre foi. do mais requintado pic-nic ao mais simples dos chás vertidos, tudo é elevado ao seu expoente máximo, ao mais ínfimo pormenor das deambulações.
     esta é uma das minhas mesas, cem por cento portuguesa onde se discute na sua língua o melhor e o pior da vida. onde, além da surpresa do olhar quando nela se pousam os olhos, se surpreende a fulgência da ternura da discussão.

domingo, 7 de outubro de 2012

amarelos e castanhos de meia estação


     O imprevisto motiva-me, explode em mim a criatividade. Porque sou impulsiva, o meu motor é quase sempre o desconhecido e, devo dizer, não me tenho saído mal. muitas vezes é difícil conseguir conciliar dois mundos tão distintos. O do trabalho e o da vida para além dele. Não me apresento com duas caras, pintadas cada uma com sua cor mas tento que o lado do improviso não desiluda a carga séria e burocrática que o meu trabalho reserva. sei que tenho conciliado os dois com tal precisão que me revejo feliz na sua fusão.
     "tira o melhor partido de tudo o que te é oferecido. e tenta fazê-lo sem te queixares."
(as fotografias foram tiradas por mim, numa viajem feita de improviso por entre os campos do mondego e no dia que que hastearam a bandeira de Portugal ao contrário).

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

dexei hoje de querer saber

     Fiquei imune. Fui ficando, talvez. Tudo o que for dito e feito a partir de agora tanto me faz. Estamos vivos e é o que interessa.
     Que venha o fisco, essa faca sem serrrilha, que corta agora deixando de imediato o sangue saltar e salpicar, molhando o que é possível molhar, pintando daquela cor o visível aos olhos. Para lhe vermos a dor.
    Estamos vivos e cá para ver. Já se viveu bem pior. Muito pior. Só dirá que não os que recusam lembrar as histórias que se ouvem contadas por quem nem um par de sapatos tinha para calçar e que ainda assim se fez homem.
     Estamos vivos, aqui para ver e para sobreviver. Para ensinar aos nossos filhos que agora o caminho é diferente, sem asfalto, de terra batida, sucalcado, arrepiado a caminhos mais sinuosos. Quero crer que essa falta de Estado que se demite aos poucos de uma função assumida, garantida e protetora, fortalecerá cada um dos seus cidadãos, tornando-os, porém, menos tolerantes e muito mais exigentes, ao arrepio de um espelho que reflete.
     Nada será como foi. Estamos aqui para mostrar que a imunidade a um Estado estranho, demisso da sua função conhecida fortalecerá os que o asseguram, consciencializando-os das suas capacidades, por vezes desconhecidas até.
    Temo, muito embora toda esta esperança, que quem foi derrubado não consiga (ainda que com esforço reconhecido) levantar-se, continuando a rota da sua estrada, desviando-se de outros que perdidos ficaram no caminho.
   Vamos ver.